Monsieur Chirac
“Estamos à beira do abismo; precisamos de dar um passo em frente”
Esta célebre frase poderia muito bem sintetizar o discurso proferido ontem por Chirac. O último antes do referendo francês a decorrer no próximo Domingo.
Chirac mostrou-se incapaz de apresentar um único argumento novo, suficientemente convincente para cativar os indecisos e abalar as convicções dos refractários. A única conclusão possível a extrair é a de que tal não acontece por inaptidão política de Chirac; tal ocorre por, efectivamente, não existirem argumentos a favor do “sim”que não nos conduzam à lógica da “fuga para a frente” a todo o custo. Isto é, à “necessidade exclusivamente inerente à sobrevivência do regime - embora sacrificando milhões de cidadãos - e, portanto, apenas a si próprio tomada como paliativo” de constitucionalizar a globalização neo-liberal.
Quanto ao resto, Chirac perdeu-se na mesma teia de banalidades que vêm sendo proferidas ad nauseam em todas as campanhas europeias pelo “sim”: “responsabilidade histórica”, a “confiança em nós próprios”, “a delusão do que está em causa no referendo”... Curiosamente, contudo, estes mesmos considerandos poderiam muito bem ser esgrimidos pelos defensores do “não” contra os emissários do “sim”, na justa medida em que deveremos confiar em nós próprios na busca de renovadas soluções para um estiolante capitalismo, assumi-lo com responsabilidade histórica e com a consciência do que verdadeiramente se joga com a ratificação da actual Constituição; apenas num aspecto parece ter acertado: “a decisão que enfrentamos ultrapassa, em muito, as tradicionais clivagens políticas”, afirmou Chirac. Este é, e apesar da diversidade de motivações e argumentos e da profunda discrepância de pontos de vista dentro do vasto movimento do “não”– desde a extrema-direita nacionalista, a elementos do partido socialista e da esquerda "mais e menos à esquerda" – este é, essencialmente, um movimento dos cidadãos e uma recusa ao modelo sócio-económico vigente em toda a Europa, que agora, definitivamente, se pretende aprofundar. Os 53%-55% de cidadãos franceses que supostamente votarão “não” atestam-no.
Mas como todo o político profissional que se preze, na hora do desespero não faltam promessas. E estas valem o que valem. No caso, Chirac não se absteve de prometer um “novo impulso” político – após o referendo, naturalmente – que permita responder às inquietudes dos franceses. Mas que impulso, monsieur Chirac?
A resposta deu-a o próprio já na segunda parte da sua prédica. O "sim", afirmou, " estimulará o modelo social europeu e abrirá o caminho a uma Constituição que é uma resposta forte aos riscos de deslocalização."
Semelhante afirmação far-nos-ia sorrir se não possuísse uma dimensão trágica. Na verdade, o que nos resta do chamado modelo social europeu? Uma sistemática perda de direitos sociais; congelamento de salários; aumento da idade da reforma; precarização do trabalho; liberalização das leis laborais; ausência de respostas nos serviços nacionais de saúde (a privatizar); crescente afunilamento social no acesso à cultura, informação e educação; recrudescimento das políticas de criminalização da pobreza e ostensivo recuo das prestações sociais por parte dos sistemas de segurança social descapitalizados ... em suma, uma inequívoca remissão do que até hoje reconhecíamos como Estado Previdência. Poderíamos continuar, enumerando exaustivamente todos os aspectos em que a Europa tem vindo a regredir desde os tempos idos da social-democracia, no que respeita aos direitos e garantias dos cidadãos. Mas será escusado. A resposta desta Constituição, também a conhecemos bem, monsieur Chirac: as empresas europeias deixarão de se delocalizar para a China porque poderão importar mão-de-obra barata dos países de Leste e nivelar o preço da nacional pela mesma bitola, ou , simplesmente, deslocalizarem-se para lá. Se a única solução que nos oferece é a da periquação, não há mais nada a conversar. Resta-nos agir e expressar o nosso NÃO; um não absoluto, integral, um não ao modelo que se pretende revigorado, um não mundial. Sabendo que o não francês corresponderá aos sentimentos de muitos milhares de europeus.
O Cão
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